Fico feliz em sair e ver que tudo parece normal. Os garis limpam as ruas. Os pedestres apressados rumam para o trabalho. Os carros passam numa sofreguidão do trânsito moroso. Um menino atravessa no meio rua com uma garrafa na mão para limpar algum para-brisa de carro, na busca por uns trocados. Os pedintes continuam lá pedindo. Tudo parece estar na mais completa ordem. Tudo na mais completa paz, como expressa um samba do Vinicius.
Eu cresci numa época de muitos fantasmas. Eles andavam rondando na escuridão que é propícia para aparecimento de avantesmas e almas do outro mundo. Quem não tinha medo do lobisomem, currupira, saci pererê e da mula sem cabeça que apareciam nas noites escuras. Pelava-se de medo, como se dizia antigamente, de todos estes seres das sombras. Existiam estórias e mais estórias para preencher as mentes férteis da criança e do menino que fomos eu e os da minha geração. A imaginação não tinha limites e levava ao crescimento de receios de topar, a qualquer momento, com inusitado habitante do além.
Esse tempo ficou num passado distante. Veio a luz elétrica e levou para o olvido os nossos medos, receios dos seres imaginários que vinham perturbar o sossego dos mortais. Engraçado, vive-se da imaginação que junto com algumas crenças dão alento neste mundo de tantas alegrias e de tantos percalços. Feliz de quem crê, pois a dúvida leva a descrença e a procura de se desfazer de tantas certezas. Não sou adepto da ignorância, mas o peso do saber é uma carga pesada que o conhecimento impõe.
A singeleza da vida está nas coisas simples e corriqueiras. Eu conheço um senhor que está sempre no mais completo bom humor. Ele tem um emprego num restaurante onde cozinha iguarias saborosas para nutrir as pessoas e fica feliz quando recebe um elogio. Tem uma família da qual ele fala com desvelo e carinho. A sua grande paixão é pescar. Não inventaram para ele coisa melhor! Gosta de conversar e conta, com vagar, do cotidiano de sua vida singela. A sua aspiração: se aposentar e passar mais tempo pescando. Este senhor somente tem as certezas de sua vida simples e certamente vive em paz.
E eu vivo assombrado pelos demônios da escuridão que tenho a impressão de que vão tomar conta de tudo, se o mundo não recuperar a racionalidade. Tempos difíceis! Tenho a impressão de que, no meio desta aparente calmaria, gesta um vulcão prestes a explodir em lavas quentes.
O cotidiano das ruas não me socorre e nem o bom humor do meu amigo que não sabe e não quer saber do mundo que pega fogo a sua volta. Sou vítima de minha curiosidade e da minha fome de saber que, depois de tantas dúvidas, me presentearam com tantas outras das quais eu não consigo me desvencilhar. Fico na expectativa de que vai aparecer uma nova luz, como a luz elétrica, que vai nos resgatar da escuridão deste mundo de sombras! Enfim, sou um ser torturado pelo peso de dúvidas infindas e das coisas negativas deste mundo de incontáveis incertezas!
Enfim, estar assim desperto é um delírio de condenados! (Soda Stereo – Prófugos).
Renato Gomes Nery. E mail – rgnery@terra.com.br